Carta ao Pai Natal
Caro Pai Natal,
Pode não
acreditar, mas estou pela primeira vez na vida a escrever-lhe uma carta. É
verdade, sou um neófito nestes assuntos, desconheço de todo em todo o
preceituário atinente à epistolografia painatalícia, pelo que terá de ser
condescendente e desculpar-me um ou outro eventual e inevitável deslize.
Desde tenra
idade, confesso, nunca acreditei lá muito naquela figura de barbas
artificialmente longas e brancas, e trajando uma pindérica vestimenta vermelha,
que generosamente distribuía prendas por todos. Particularmente, sempre
acreditei com toda a convicção que o Menino Jesus era o patrocinador da
imensurável alegria que no dia 25 logo pela manhã se apoderava de mim assim que
via a árvore rodeada de coloridos embrulhos. Por essa razão, sempre que
almejava aquele fabuloso brinquedo que vinha há meses sonhando
ininterruptamente, muitas das vezes desde Janeiro, pedia-o em devotíssimas e
elaboradas orações ao Menino Jesus, não a esse, digamos, estranho e
desconhecido lapónio.
No último
Natal, esperançoso de ver resolvidos os problemas que há tanto afligem a nação
portuguesa, e tendo plena consciência da ingente e sobre-humana tarefa
necessária para suprir a tão laborioso desígnio, resolvi recorrer ao auxílio
celestial e, como nos idos anos da minha meninice, entreguei-me ao costumário
ritual implorativo. Desta feita, durante dois meses, entre preces e súplicas,
implorei ao Menino Jesus uma solução idónea e lesta para as nossas tormentas.
Ironia natalícia, divina, ou até mesmo do destino, na manhã do dia 25, em volta
da árvore, só os habituais presentes de familiares e amigos. Fiquei desiludido.
À desilusão seguiu-se o desprezo, ao desprezo a cólera. Parece que o filho
resolveu enveredar pelas sendas do pai – esse agónico desdém a que nos tem
votado. De agora em diante, não mais perturbarei a famelga celeste. Arre! Que
vontade incontida tenho de virar pelo avesso aquela manjedoura e lançar fogo
àquela palha toda. Que vontade pertinaz tenho de tornar-me o primeiro
iconoclasta presepista. Peço imensa desculpa por este assomo delirante, mas
isto são idiossincrasias de um português indignado, desiludido, algo que um
finlandês como o senhor jamais entenderá.
Não mais me
deterei nestas considerações; avancemos portanto em direcção ao propósito desta
missiva.
Estou certo que
o senhor conhece o primeiro-ministro português, todavia suponho que desconhece
aquilo que este governante está a fazer com Portugal e milhões de portugueses.
Deixe por alguns instantes os brinquedos, os embrulhos, as renas e queira dar uma
saltada à internet. A leitura de meia dúzia de artigos da imprensa portuguesa
desta semana bastará para elucidativamente ficar ao corrente do statu quo deste país, bem como do
calamitoso desempenho do nosso sumo governante.
De igual modo,
ficará a saber que também ele é um Pai Natal, mas bastante peculiar, pois,
contrariamente a si, ele segue uma doutrina nos antípodas da sua solidariedade,
uma doutrina propalada por uma escola, ou seita, não tenho a certeza, de
Chicago. Os presentes que ele faz questão de repetidamente pôr-nos no sapatinho
também são diferentes, visto que por causa da crise estes vêm sempre
embrulhados em papel de austeridade. A título de exemplo, e para ficar com uma
ligeira ideia, há relativamente poucos dias recheou-nos o sapatinho com um
chorudo aumento da carga fiscal.
Pai Natal, a
política-picareta-dinamite do nosso primeiro-ministro está a demolir este país,
está a arrancar enormes pedaços dos já de si parcos salários que os portugueses
auferem, está a arrancar-nos pedaços de carne, de alma, de esperança, de
dignidade, está a arrasa-nos os alicerces do futuro. Neste momento somos uma
nação onde o quotidiano tem o pesadume de uma pesadona cruz, uma nação onde em
todos os departamentos de finanças e bancos encontramos sempre algum Judas
pronto a “tirar-nos da bolsa tudo o que
nela se lança” e a entregar-nos, não por trinta dinheiros, antes
por centenas deles, a despóticos e glutões agiotas. O nosso quotidiano é um
calvário, sem Cireneus, com muitas mães a chorarem por elas, pelos seus filhos,
pelos seus maridos, e muitas Verónicas a enxugarem todos estes rostos.
Resumindo, diria que este país está a transformar-se num “vale de lágrimas”,
copiosamente derramadas pela amargurada vida que levamos. ”Salve, Rainha, mãe
de misericórdia, esperança nossa, esses vossos olhos misericordiosos a nós
volvei”. Olhe que bem precisamos.
Pai Natal, cada
vez que vejo o manda-chuva, o manda tudo abaixo do nosso primeiro-ministro vir
ao canal estatal com o propósito de dirigir-se aos portugueses - e traz gravata
azul, na aba do casaco aquela minúscula bandeira de Portugal, e na cara
espetados aqueles intimidadores óculos neoliberais-, digo sempre para mim
mesmo: calma rapaz, sê desta vez esperançoso. Em vão: como sempre, a desilusão….
Mais um pacote de medidas de austeridade… Pacote? Qual nada! Mais um contentor,
sejamos realistas, sinceros e coerentes. Assim que o sujeito abre a bocanha,
começam logo a jorrar excrementos em catadupa. Peço perdão pelo conteúdo
escatológico, mas não encontro um vocábulo mais ilustrativo. (O homem tem um
grave e raríssimo problema congénito – a extremidade do seu intestino grosso
encontra-se na cavidade bocal). Da minha parte (e nisto acompanham-me milhões,
tenho a certeza), não muito depois, é sintomático, começa o doloroso e já
típico desenrolar de torturantes sintomas. Não sei se é alergia ao que ele diz,
ou alergia à sua figura (porventura são as duas), mas o certo é que dá-me
bruscamente uma dor agudíssima no estômago, a tensão arterial aumenta para
níveis rentes a um AVC, o ritmo cardíaco põe o pé no acelerador e é vê-lo ir
por aí desrespeitando todas as regras relativas ao código de saúde; fico com
vertigens (olho para o chão e parece que estou a ver os meus pés do 10º andar
de um prédio), desabam em mim cefaleias insuportáveis, tenho suores polares,
vómitos sulfúrico-clorídricos tempestuosos, diarreias caudalosas como o
Amazonas, picadas nas mãos e nos pés, bem piores que uma ferroada daqueles
viris abelhões aparelhados de ferrão de grande calibre; fico com falta de ar,
sinto palpitações vulcânicas, contracções e tremores com intensidades sísmicas
na ordem dos 12 graus na escala de Richter. Pai Natal, juro-lhe, ao ver aquele bombardeiro
despejar aquelas sentenças aniquiladoras, vê-se nitidamente por detrás daquelas
vidraças polidíssimas, anti-reflexo um cínico brilho de prazer a crepitar
naquelas pupilas atormentadores. Isso atormenta-me.
O sujeito parece que está a apanhar o gosto à
coisa. Esta constatação não agoura é nada de bom para o meu lado. Um dia
destes, o meu músculo cardíaco, farto de tudo isto, prega-me um valente
cacetadão no peito, aplica-me um ippon e vou ao tapete. O nosso
primeiro-ministro, esse, de coração forte, resistente, continuará a vir ao
canal estatal, a despejar as mesmas pesadas cargas dos habituais contentores, e
eu, rodeado de vermes, de ouvidos moucos e olhos cegos, apodrecerei naquela
tranquila paz que só encontramos quando enfiados num fato de madeira e rodeados
do terroso silêncio de uma cova. A morte, por vezes, tem um lado bastante
positivo. Mas eu não pretendo ainda morrer, porquanto desejo viver até à idade
em que haverei de ver o meu país livre destes pulhas.
Pai Natal,
tendo perfeita consciência dos limites óbvios do seu erário e consequente
disponibilidade orçamental para os gigantescos gastos que se aproximam, não vou
naturalmente pedir-lhe que ofereça a cada português um subsidio de Natal, o que
até convinha, pois era, leu bem, era - porque já era mesmo, passo o
malabarística cacofonia (trata-se de mais uma prendinha do nosso
primeiro-ministro) - essa valiosa subvenção que possibilitava a muitas famílias
acertar as suas contas no final do ano, amortizar os sugadores créditos, pagar
certas despesas, o seguro do carro e, nalguns casos, juntar um pecúlio para uma
ou outra eventualidade futura. Para este Natal, quero simplesmente pedir-lhe em meu nome, e em nome desta nação, que tenha a bondade de oferecer ao povo português um novo primeiro-ministro, alguém
superiormente competente, eminentemente diligente, totalmente
desinstrumentalizado e absolutamente íntegro. Não será despiciendo de forma
alguma presentear-nos com um ministro escandinavo. Aceitaremos de bom grado,
acredite. Aqui para nós, até uma rena das suas faria melhor figura nas rédeas
do nosso executivo que o guarnecido cervídeo que lá está.
Antes que o meu
olvido perpetre das suas, gostaria de pedir-lhe, caso dê seguimento à ideia de
oferecer-nos um primeiro-ministro, que o presente seja entregue, detalhe
deveras importante, em Berlim, em casa da senhora Angela Merkel, visto que toda
a equipa governamental portuguesa mudou-se recentemente de armas e bagagens
para essas bandas.
Pensando
melhor, Pai Natal, a conjuntura aqui na escornada fímbria vai de tal maneira
que nem mesmo a mestria de um talentoso ministro surtirá efeito algum. Que se
danem pois esses espécimens! Definitivamente! Desconsidere portanto este
pedido.
Olhe, de súpeto
acaba de ocorrer-me uma ideia melhor. Neste Natal, ofereça-nos um mágico. Sim,
um mágico. Eis a solução mais eficaz e idónea, eis o ser que num abrir e fechar
de olhos solucionará todos os nossos problemas, crises e adversidades. Mas,
permita-me um pequeno reparo, nada de mágicos amadores, daqueles que tiram
coelhos da cartola. Aquele que temos a reger o curral governamental, creia, já
nos basta, e de que maneira. Dois Coelhos no poder matariam milhões de
portugueses de uma cajadada. Seria uma tragédia.
Pai Natal, eu
quero acreditar que o senhor existe, que vai ler esta carta e tomar em
consideração o meu pedido, para nós portugueses tão vital como o oxigénio, esse
gás essencial para a manutenção da vida, um gás que a curto prazo, aqui, em
Portugal, temo que possa também vir a ser alvo do crivo da contenção. Num país
onde a aguçadíssima lâmina da austeridade faz do mais maciço diamante um mole
pedaço de manteiga, já nada suscita a minha admiração.
Antes de dar
por concluída esta carta, gostaria de deixar-lhe aqui o meu prévio
agradecimento à atenção que queira conceder a estas linhas que ora termino.
Subscrevo-me,
com a mais elevada consideração.
dinismoura.